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segunda-feira, 9 de maio de 2005

Complexidade-Efémero-Não Perene

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Ligando as Teorias de Edgar Morin, aos contributos de Rem Kolhaas para a compreensão da cidade actual, na sua não perenidade, temos como produto este magnífico texto, citado daqui.

Desconstruindo Koolhaas - parte 1: P. MP.M. [pouco, muito pouco, mínimo]
Clarissa Moreira

“Estamos todos em perigo”
Pier Paolo Pasolini

Quando Le Corbusier veio ao Brasil (1), encontrou terreno fértil: jovens arquitetos brasileiros apaixonados pela idéia da modernidade e pela possibilidade de propor uma Nova Arquitetura (2). Encontrou um país fascinado pela perspectiva do desenvolvimento e do progresso.

Mais de sessenta anos depois, receberemos uma outra visita, a de Rem Koolhaas, arquiteto de origem holandesa, recente vencedor do prêmio Pritzker em 2001, o Nobel da arquitetura. Na indicação para o prêmio, Koolhaas é apontado como um dos construtores do século 21, segundo reportagem de primeira página da Folha de São Paulo, suplemento Folha Ilustrada, de 6 de março de 2002.

E por que Le Corbusier e Koolhaas ?

Le Corbusier representava uma aspiração a uma nova condição cheia de promessas e de possibilidades para a vida urbana, cujo naufrágio o próprio Le Corbusier delegou às gerações que o sucederam (3), que supostamente saberiam lidar com os recém-nascidos Frankensteins: mutantes urbanos que se reproduziram incessantemente, em maior escala em países africanos e asiáticos, gerando fenômenos urbanos atuais como Lagos ou Pearl River Delta, estudados entusiasticamente por Rem Koolhaas. Ocorreram também na América Latina, como no exemplo de São Paulo, onde os processos tiveram intensidades próprias e características particulares.

Ao buscar nestes casos o genérico, Rem Koolhaas reabilita a fórmula corbusiana, moderna, de reduzir os acontecimentos a uma matriz única. O que não é acaso. Tanto quanto há um século atrás, trata-se de uma estratégia, seja de expansão ou de criação de domínios. Fatos como a reapropriação (4) de Roma, através do Projeto Mutations coordenado por Koolhaas, nos deve alertar para a importância do modelo adotado e o seu papel na construção do pensamento e seus efeitos na cidade, tanto diretos quanto colaterais.

Le Corbusier, ao tomar Roma como exemplo, explicitando que se refere à Roma antiga (5), desenvolve uma análise de seus fundamentos urbanos. Para Corbusier, o que possibilitou a construção da Roma antiga foi a unidade operacional, um objetivo claro em vista, e a classificação em várias partes, seu objetivo sendo a conquista e o governo do mundo, a dominação e a organização de um império romano. De forma um pouco mais sarcástica, vemos em Mutations um tipo de Sim City (6) para construção da cidade genérica, baseado novamente em Roma antiga.

Some-se a redescoberta da tábula rasa:

“A noção de cidade passou por uma mudança radical no final do século 20. Após Aldo Rossi, somos incapazes de imaginar que uma cidade possa existir sem história. Mas hoje existe uma vasta porção da humanidade para quem viver sem história não coloca nenhuma questão em especial. Poderíamos ir mais além: viver sem história é uma aventura apaixonante para eles. Esta observação deveria nos levar a revisar um certo número de dogmas ou teorias de arquitetura e urbanismo e, talvez, reexaminar a validade (ou não) de um dos mecanismos mais importantes do século 20: tabula rasa, a idéia de começar do zero, sem a qual os arquitetos modernos dos anos 20, como Le Corbusier, acreditavam que nada era possível. Uma posição como essa claramente demonstra um extremo otimismo, um otimismo que a década seguinte demoliu completamente. Mas talvez precisemos retomar o uso da tábula rasa – talvez tenhamos que ser mais seletivos em nossas estratégias de urbanização, em vez de permanecer ansiosos conservadores incapazes de especular em termos do novo” (7).

E com estes conceitos e estratégias, estão revalidadas e tornadas avant garde as idéias de nossos avós modernistas.

No Brasil, já vimos tudo isso. Vivemos o resultado destes processos.

Surge, pois, a questão:

O que Koolhaas poderá aprender com São Paulo? O que Koolhaas poderá aprender com o Brasil? E o que podemos aprender com Koolhaas?

Antes de mais nada, é preciso lembrar o Manifesto Antropófago, que os modernistas brasileiros formularam na década de 20, quando vários estrangeiros por aqui circulavam (8), e em momentos como esse vê-se sua importância renovada:

Propomos devorar Koolhaas, num processo de desconstrução-digestão-gestação.

De imediato, recoloca-se a possibilidade de estranhamento e perplexidade ao defrontar-nos com a condição urbana contemporânea… Não a considerarmos sem possibilidades, um erro do passado, um deslize, um mal. Nem bem, nem mal: ela é.

Assim, vemos renovar-se a oportunidade de deixarmos de nos espelhar eternamente em Roma, Paris, Barcelona e demais vitrines européias e iniciar um processo de autodescoberta baseado em um olhar interessado no espantoso, no absurdo, no caótico, no incontrolável.

Todavia, não poderemos, nesse processo, desprezar o fato de que os mutantes urbanos vão de mal a pior. Isso é razão suficiente para não nos apressarmos em iniciar a apologia do modus operandi reprodutor do genérico ou defender a adesão do pensamento urbano às estratégias reinantes de produção de cidade.

Como a condição urbana, em geral, foge ao controle, alguns temores têm sido amenizados com bolhas de alta segurança, com grades, câmaras de vigilância, lugares ¨públicos¨ condicionados: vida urbana sob 24 horas de monitoramento. Todos estão apavorados com Frankenstein e se protegem, escondem ou correm. E ao fazê-lo, o tornam sempre maior e mais desgovernado. Não há escapatória a não ser o enfrentamento já que não abandonamos o projeto de vida urbana.

E é aí que entram os jovens arquitetos brasileiros do século 21 e quem mais desejar, que provavelmente já não acreditam tão facilmente em panacéias, em revoluções… Muito lamentavelmente, tudo anda um tanto desacreditado.

O que esses jovens arquitetos brasileiros podem produzir a partir desta confrontação ou deste encontro?

Alguns desafios:

– Perceber a condição urbana em sua complexidade, o que possivelmente é das grandes contribuições de Rem Koolhaas a seu tempo – sua eficiente e muitas vezes brilhante percepção da contemporaneidade.

– Ir além das reduções da lógica humana imperfeita, do i-racionalismo e das velhas oposições passado-futuro, preservação-destruição, específico – genérico: cansaço da vida entre a tábula rasa e a conservação museológica…

“Nisso há desconfiança frente às idéias modernas, há descrença de tudo o que foi construído ontem e hoje; há, talvez, mesclado com isso, um leve desgosto e desdém que não mais suporta o bri-à-brac de conceitos das mais diversas procedências (…) Nisso me parece que devemos dar razão aos atuais céticos anti-realistas e microscopistas do conhecimento: o instinto que os leva a se afastar da realidade moderna não está refutado – que nos interessam suas vias retrógradas e tortuosas! O essencial neles não é que desejem ir para trás, mas que desejem ir embora. Um pouco mais de força, impulso, ânimo, senso artístico: e desejariam ir para além – não para trás” (9).

– Abordar a condição urbana em sua complexidade, sabendo que ela não tem um prazo de validade ou uma data de fabricação. Reinventar modos de resistência à negação da vida urbana, já que nada está predestinado: começou há milênios, pode acabar amanhã, daqui a cem anos, nunca… são parte da condição urbana contemporânea o edifício de apartamentos, a via expressa, a loja de grife, as esquinas, a rua, o shopping, a feira-livre, o mercedes-benz, o mendigo, o aeroporto, a favela, o casario… tudo o que se chama passado e é presente, e o futuro, em nome do que já se cometeu enormes equívocos e que está fora da nossa ânsia controladora.

– Nosso tempo é agora, nessas cidades, com essa multiplicidade de possibilidades, oscilantes, contraditórias, que nos desafiam a cada momento a criar a partir delas. Criações, invenções, idéias que renovem os ânimos: “para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras…” (10).

Diante da condição urbana, sempre mutável, sempre a ser descoberta, nos subterrâneos do mundo em que vivemos, devemos andar com nossas próprias lanternas.

Estamos todos em constante perigo e essa é toda a riqueza da condição urbana: lançar-nos ao mar tempestuoso, instados a recriar formas de navegação.