A Era do Vazio - Um Teatro Discreto
(...) O narcisismo não designa apenas a paixão do conhecimento de si, mas também a paixão da revelação íntima do Eu, como o testemunha a inflação actual das biografias e autobiografias ou a psicologização da linguagem política. As convenções parecem-nos repressivas, "as questões impessoais só despertam o nosso interesse quando as encaramos - erradamente - sob um ponto de vista personalizado"; tudo deve ser psicologizado, dito na primeira pessoa: o indivíduo deve implicar-se a si próprio, revelar as suas emoções, exprimir o seu sentimento íntimo, à falta do que incorrerá no vício imperdoável da frieza e do anonimato. Numa sociedade "intimista", que tudo mede pela bitola da psicologia, a autenticidade e a sinceridade tornam-se, como já Riesman notava, virtudes cardiais, e os indivíduos, absorvidos pelo seu eu íntimo, vêem-se cada vez mais incapazes de "desempenhar" papéis sociais: tornámo-nos "actores privados de arte". Com a sua obsessão de verdade psicológica, o narcisismo enfraquece a capacidade de lidar com a vida social, torna-se impossível toda a distância entre o que se sente e o que se exprime: "A capacidade de ser expressivo perde-se, porque o indivíduo tenta identificar a sua aparência com o seu ser profundo e porque liga o problema da expressão efectiva ao da autenticidade desta". E é aqui que reside a armadilha; porque quanto mais os indivíduos se libertam de códigos e costumes em busca de uma verdade pessoal, mais as suas relações se tornam "fratricidas" e associais. Com a exigência crescente de mais imediato e de maior proximidade, assaltando-se o outro à força de confidências especiais, já não se observa a distância necessária ao respeito da vida privada dos outros: o intimismo é tirânico e "incivil". A civilidade é a actividade que protege o eu dos outros, e lhe permite portanto fruir da companhia de outrém. O uso da máscara é a própria essência da civilidade.(...)
Etiquetas: A Era do Vazio, Gilles Lipovetsky
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