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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A Era do Vazio - Um Teatro Discreto

(...) O narcisismo não designa apenas a paixão do conhecimento de si, mas também a paixão da revelação íntima do Eu, como o testemunha a inflação actual das biografias e autobiografias ou a psicologização da linguagem política. As convenções parecem-nos repressivas, "as questões impessoais só despertam o nosso interesse quando as encaramos - erradamente - sob um ponto de vista personalizado"; tudo deve ser psicologizado, dito na primeira pessoa: o indivíduo deve implicar-se a si próprio, revelar as suas emoções, exprimir o seu sentimento íntimo, à falta do que incorrerá no vício imperdoável da frieza e do anonimato. Numa sociedade "intimista", que tudo mede pela bitola da psicologia, a autenticidade e a sinceridade tornam-se, como já Riesman notava, virtudes cardiais, e os indivíduos, absorvidos pelo seu eu íntimo, vêem-se cada vez mais incapazes de "desempenhar" papéis sociais: tornámo-nos "actores privados de arte". Com a sua obsessão de verdade psicológica, o narcisismo enfraquece a capacidade de lidar com a vida social, torna-se impossível toda a distância entre o que se sente e o que se exprime: "A capacidade de ser expressivo perde-se, porque o indivíduo tenta identificar a sua aparência com o seu ser profundo e porque liga o problema da expressão efectiva ao da autenticidade desta". E é aqui que reside a armadilha; porque quanto mais os indivíduos se libertam de códigos e costumes em busca de uma verdade pessoal, mais as suas relações se tornam "fratricidas" e associais. Com a exigência crescente de mais imediato e de maior proximidade, assaltando-se o outro à força de confidências especiais, já não se observa a distância necessária ao respeito da vida privada dos outros: o intimismo é tirânico e "incivil". A civilidade é a actividade que protege o eu dos outros, e lhe permite portanto fruir da companhia de outrém. O uso da máscara é a própria essência da civilidade.(...)
© LIPOVETSKY, Gilles, Era Do Vazio

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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A Era do Vazio - Gilles Lipovetsky

(...) Não é verdade que os indivíduos procurem um desprendimento emocional e se protejam contra a irrupção do sentimento; a esse inferno povoado de nómadas insensíveis e independentes, devemos opor os clubes de encontros, os "pequenos anúncios", a "rede", todos estes milhões e milhões de esperanças de encontros, de ligações, de amor, que precisamente se realizam com cada vez mais dificuldade. É aqui que o drama é mais profundo do que o pretenso desprendimento cool: homens e mulheres continuam a aspirar tanto como antes (ou talvez nunca tenha avido até tanta "procura" efectiva como nesta época de deserção generalizada) à intensidade emocional de relações privilegiadas, mas quanto mais forte é a expectativa mais raro parece tornar-se o milagre fusional, ou, em todo o caso, mais breve. Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais livres e emancipadas das coações antigas as relações se tornam, mais rara se faz a possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si; de onde uma fuga para a frente de "experiências", que mais não faz do que traduzir esta busca de uma "experiência" emocional forte. Porque não posso amar e vibrar? Desolação de Narciso, demasiado bem programado na sua absorção em si próprio para poder ser afetado pelo Outro, para sair de si - e, no entanto, insuficientemente programado, pois que deseja ainda um mundo relacional efectivo.

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